Uma jornada de 4 dias atravessando desde El Chaltén a El Bolsón de carona. Tudo começou quando abrimos o site para comprar passagens de ônibus e vimos que esse trajeto custaria mais caro do que o avião de São Paulo a El Calafate. Viajar de carona já estava no radar, mas não sabia que seria tão logo. Percebemos que entre os viajantes mochileiros, era mais comum sair dali de carona do que de outro modo. Então, pegamos um pedaço de papelão, uma caneta, e escrevemos “Norte”, porque qualquer carro que estivesse indo nesse sentido, já poderia nos levar pelo menos um pouco mais adiante.

Se você tem vontade de conhecer a Patagônia do jeito raiz e gastando pouco, fica comigo até o final deste texto!
Oi, sou a Fer e eu vivo viajando há maior tempão. A cada dia com mais certeza que esse é, dentre tantos caminhos que podemos seguir, o melhor que eu poderia escolher pra mim. Talvez o que eu tenho a dizer pode te instigar a buscar sair mais da sua zona de conforto e te mostrar que isso não só é possível, mas eu diria até que, necessário.
Antes de eu começar a contar como foram esses 1500km cruzando a Patagônia de carona, quero contar os desafios e as vantagens desse caminho.
Principais desafios:
Clima:
Era outono, então estava super frio, as vezes temperaturas negativas, ventos que chegavam facilmente a 70 km/h.
Rota:
A maior parte da rota — de El Chaltén até Esquel, cerca de 1.230 km — é bem deserta. Ao longo do caminho, há apenas alguns poucos vilarejos, que usamos como pontos estratégicos para dormir. Sempre que conseguíamos uma carona, precisávamos garantir que o motorista pudesse nos deixar em um desses vilarejos. Isso era essencial caso não conseguíssemos seguir viagem no mesmo dia, assim ao menos teríamos uma cama para dormir e não acabaríamos congelando à beira da estrada, já que não levávamos equipamentos para acampar. Essas vilas também ficam bem distantes umas das outras, separadas por longos trechos de fazendas e paisagens vazias. Por isso, quando entrávamos em uma carona, tínhamos que percorrer largas distâncias com essas pessoas.
Hospedagem e alimentação:
Além das vilas serem super pequenas, não são acostumadas a receber muitos turistas. Por isso, a variedade de hospedagens é bem limitada e não tínhamos a opção de cozinhar em nenhuma, tínhamos que comer em restaurantes ou sanduíches de mercado em todas as refeições.
Principais vantagens:
Segurança e Cultura:
Se você tem vontade de viver a experiência de viajar de carona algum dia, a Patagônia é o lugar ideal. A região é extremamente segura e tem a “cultura da carona”, os moradores e caminhoneiros que circulam por lá estão acostumados a ajudar viajantes, então é raro passar um dia sem conseguir, pelo menos, uma caroninha para seguir caminho. Embora eu tenha feito essa jornada com meu namorado da época, posso dizer que é sim uma rota segura para mulheres viajando sozinhas. Inclusive, encontramos várias delas pelo caminho, também com o polegar estendido e o coração aberto pra estrada.
Economia:
Mesmo com os gastos com hospedagem e alimentação durante os quatro dias de trajeto, ainda assim gastamos apenas um terço do valor que seria pago em uma passagem.
Experiência única:
Além da economia, viajar assim te dá a chance de conhecer os moradores locais e pessoas da estrada: viajantes, caminhoneiros, aventureiros que estão sempre indo e vindo por ali… e pelo mundo. É impossível terminar essa jornada sem ter escutado histórias que vão te marcar e te transformar de jeitos que você nem imagina. Já pensou no quão rico é isso?
Preparativos
O plano era claro, chegar em El Bolsón gastando o mínimo possível e tentar não morrer de frio. Tínhamos que estar abertos para deixar o caminho se revelar, pois não tínhamos como prever quanto conseguiríamos avançar por dia.
Nos dias anteriores, sentamos com um casal de argentinos de Rio Gallegos, cidade ainda mais ao sul. Eles costumam ir para El Chaltén no mínimo uma vez por ano e já fizeram a Patagônia inteira de carona, inclusive acampando na beira da estrada. Eles nos deram o nome de todos os vilarejos que teríamos a garantia de uma cama, e nos alertaram sobre um que poderíamos parar, mas que não recomendariam dormirmos. Nos deram as possíveis rotas e todas as dicas possíveis.
Quanto tempo precisaríamos ficar ao relento congelando esperando uma boa alma nos estender a mão, era minha maior preocupação. Talvez se eu estivesse sozinha teria comprado a passagem cara, não costumo contar tanto assim só com a sorte.
Compramos comida, cozinhamos alguns ovos e legumes, fizemos alguns sanduíches, enchemos garrafas d’águas e… fomos com fé (eu nem tanto, já que estava consumida pelo pessimismo e medo de que morreria de frio depois de ter que passar a noite na beira da estrada).

Nossa rota e sorte (?) na estrada
Caminhamos do nosso Hostel em El Chaltén até um pouco pra frente da saída da vila. Os carros que passavam por ali só poderiam estar seguindo em duas direções: para El Calafate, ou na direção que passaria por um trevo, o qual precisamos desembarcar e esperar outra carona que nos levasse até Governador Gregório, ou mais longe se tivéssemos muita sorte.
Não demorou muito tempo para pegarmos a primeira carona que nos levou até o trevo. Ali tive que controlar a mente, pois se déssemos muito azar e ninguém nos levasse, passaríamos a noite na estrada. De fato não demorou muito para um casal com seu cachorro em um motorhome nos levar até Gobernador Gregores.



Ela, a motorista, era suíça, ele, francês. Ela adorava conversar e contou várias histórias das viagens que já haviam feito. Já ele… tudo o que sabemos sobre ele foi ela quem nos contou. Estão na estrada até hoje, quase alcançando o grande objetivo de chegar ao Canadá com a van.
Sabíamos que estávamos indo na mesma direção, mas eles planejavam passar mais uma noite em Governador Gregores para resolver algumas pendências da vida. A gente queria seguir viagem no dia seguinte, então nos despedimos ali mesmo.
Encontramos uma hospedagem com jeitinho de casa de vó, e era mesmo! A dona era uma senhorinha super fofa, que nos recebeu com carinho. Missão do primeiro dia: cumprida. Cama e banho quente garantidos.
No dia seguinte, acordamos cedo, tomamos café e fomos pro posto de gasolina atrás de carona, mas não encontramos. Seguimos mais adiante na estrada caminhando com nossas mochilas por mais 2 km, para ver se ali teríamos mais sorte. Para nossa grande surpresa, um pouco depois quem parou para nós novamente foi o mesmo casal do dia anterior. Eles haviam mudado de ideia e decidiram seguir viagem. Poderiam nos levar até só Bajo Caracoles, que era o lugar que nos recomendaram evitar correr o risco de passar a noite, pois só tem uma hospedagem e ela poderia estar lotada. Decidimos arriscar mesmo assim, pois ainda chegaríamos ali razoavelmente cedo e poderíamos seguir tentando outra carona.
Descemos em Bajo Caracoles e seguimos na estrada esperando, esperando, esperando e nada… Eu entrei no povoado, se é que podemos chamar aquelas 3 ruas de chão de terra assim. De fato tinha um único hostel ali e ele estava fechado, eu tentei ligar no número que estava na porta e ninguém atendia. Tinha também um hotel, mas era super caro. Isso me tranquilizava porque na pior das hipóteses teríamos onde dormir, mas ele custava quase o preço da passagem que estávamos tentando economizar. Enquanto eu andava por ali tentando pensar na estratégia caso tudo desse errado, meu ex-namorado seguia confiante na estrada, tentando encontrar uma carona e… conseguiu.
Eu voltei correndo para subir no primeiro caminhão da viagem. Se não me engano, o nome do motorista era George. Ele nos levou dali até Perito Moreno, uma vila bem ajeitada, onde pegamos um quartinho de hotel bem simples, mas confortável e com água quente, e ainda fomos em um restaurante de comida local e caseira super gostoso.



Dormimos e no dia seguinte repetimos a rotina: acordar cedo, café, beira da estrada. Nesse terceiro dia já não tivemos a mesma sorte, era dia de feriado da Guerra das Malvinas, ou seja, menos caminhoneiros trabalhando e menos pessoas se deslocando. Ainda assim, conseguimos um caminhoneiro que nos levou até Río Mayo, que não era muito longe, mas pensamos que seria melhor do que nada. Chegamos razoavelmente cedo ali e imaginamos que conseguiríamos seguir caminho. Porém, estava chovendo sem parar, o que dificultava ainda mais conseguir carona, já que além de tudo ainda estávamos molhados e ninguém quer gente molhada no carro, né? Ficamos mais de 4 horas parados nessas condições: frio, chuva, vento, fome, desespero. Eu fiquei muito nervosa, porque além de tudo, teríamos que caminhar MUITO pra chegar no centro do povoado, onde teria hospedagem. Estávamos em frente a um “serviço de informação turística”, mas que estava fechado por causa do feriado. Por sorte, alguém apareceu ali e essa pessoa nos deu uma carona até o centro para conseguirmos uma hospedagem. Ali conseguimos um hostel, mas que estava totalmente vazio e tivemos o espaço todo para a gente. Conseguimos colocar nossas roupas pra secar e esquentar uma comida que ainda tínhamos com a gente de El Chaltén.
No dia seguinte, o dono desse hostel nos levou até um trevo para fora da cidade e nos disse que ali com certeza conseguiríamos algo. Porém, só conseguimos carona com um casal aposentado, que nos levou até o trevo seguinte e nos prometeu que ali sim conseguiríamos algo.
Eu não gostava nem um pouco da ideia de ser deixada em trevos, pois como eu disse, se não tivéssemos sorte, não teríamos para onde correr e a noite seria duríssima no meio da estrada e com muito, muito frio. Ainda faltavam 550 km para nosso destino final e eu estava com o humor negativo, pois meu lado pessimista não parava de pensar no que aconteceria se não encontrássemos uma boa alma que nos levasse até pelo menos Governador Costa.
Com a graça de Deus, um caminhoneiro chileno chamado Pablo parou pra gente. Pablo vinha de uma longa linhagem de caminhoneiros, até sua falecida companheira era da estrada, e infelizmente perdeu a vida em um acidente. Ele contou essa e outras histórias enquanto mostrava fotos da sua família, incluindo a filha, que às vezes o acompanha nas viagens.
No caminho, paramos para almoçar em um posto da rede Puma, bem conhecida por vários países da América Latina. Mas na Patagônia, fica a dica: os Pumas servem comidas surpreendentemente deliciosas a preços justos. Sentamos juntos pra comer e depois seguimos viagem.
Pablo é aquele tipo de caminhoneiro que tem adesivos de mulher pelada no vidro, sabe? E ainda uma boneca pelada grudada na antena do caminhão. Na rádio, tocava aquela playlist nostálgica de hits — as mais tocadas do YouTube anos 2000. E foi assim que chegamos em El Bolsón, concluindo os 1.500 km de viagem no nosso quarto dia de jornada.



Uma curiosidade sobre a estrada: é cheia de guanacos por todo o caminho, eles estão o tempo todo atravessando a rodovia de um lado pro outro. Muitas vezes, quando eles tentam pular a cerca acabam ficando presos e morrem assim. Por isso, é super comum vê-los mortos enroscados, como na foto abaixo.



O que vale mais a pena?
Com certeza seria mais fácil e menos cansativo comprar uma passagem de ônibus que me levaria diretamente ao meu destino final, em um ambiente aquecido e poltronas razoavelmente confortáveis. Eu não teria corrido risco de dormir na rua e no frio, também não teria tomado chuva com o termômetro marcando 5 graus e ventos fortes. Normalmente quando temos dinheiro para pagar por esses confortos, pagamos sem pensar duas vezes. Afinal, uma história dessa pode soar um pouco como loucura para algumas pessoas. Mas a verdade é que se eu quisesse mesmo, eu tinha dinheiro pra pagar pela passagem, mas algo em mim, apesar do pessimismo que por vezes me dominava e me fazia crer que morreria congelada, eu queria viver essa experiência. E ainda quero mais.
Quando comecei essa viagem, eu havia acabado de sair do meu trabalho para buscar viver o sonho de trabalhar dentro do nicho de viagens e experiências, eu tinha minha reserva financeira e investimentos, mas não podia sair gastando, pois não tinha uma garantia de quando voltaria a gerar renda. Agora que já recuperei minha estabilidade financeira, me percebi pensando “não vou mais passar por isso, vou pagar pelo conforto X, Y, Z, que antes não era uma prioridade”. Porém, por mais que eu saiba que investir em certos confortos faz sentido, tenho me questionado muito qual é o limite para que isso não acabe me blindando de viver certas experiências que talvez só tenha vivido porque queria economizar em tudo que era possível.
Tantas vezes minha experiência de viagem foi transformada, e melhorada em 200%, justamente porque eu tinha pouco. Isso me fez depender da generosidade de estranhos, e, dessas interações, nasceram conexões e memórias preciosas. Claro que é uma linha tênue, mas tem hora que menos é mais.
Esses dias, vi que uma mulher milionária, que acompanho na internet, decidiu dar a volta ao mundo. E fiquei pensando: se ela viajar do mesmo jeito que vive, cercada de regalias, pagando por todos os tipos de conforto (até aqueles totalmente desnecessários, só porque pode)… será que a experiência vai ter a mesma graça?
Na minha opinião, uma viagem precisa de uma pitada de desconforto para dar espaço à verdadeira magia acontecer. Os melhores sabores que provei custavam pouco; as memórias mais emocionantes foram em lugares simples, familiares, e aos quais cheguei a duras penas — não de helicóptero. O famoso “feliz no simples”, de verdade, não importa a localização geográfica.